sábado, 14 de janeiro de 2012

Humanas raízes de uma certa Gameleira


Diz o ditado popular que santo de casa não faz milagre. Uma homenagem como a que aconteceu na terça-feira no histórico Cine-teatro Recreio desmente essa “verdade” ao valorizar o que o Acre tem de melhor: pessoas que fizeram das dificuldades da vida um infinito universo de possibilidades. A seguir o texto de abertura da cerimônia.

Eurilinda Figueiredo interpretando o texto de abertura da cerimonia - foto Val Fernandes


Senhoras e Senhores..., Sejam todos bem vindos esta noite...

Talvez não exista no mundo outra terra
mais misteriosa ou surpreendente que o Acre.
Quando menos se espera é daí mesmo que sai
o que ninguém seria capaz de supor...
Pois nossa história de hoje é bem assim mesmo...
Surpreendente e, de certa forma, talvez, mágica...

Voltemos então no tempo... até os idos de 1930...
só pra lembrar como tudo se deu...

Eram anos tristes aqueles...
A borracha não tinha mais preço. Muitos seringais fecharam... outros se apequenaram pra sobreviver. Muita gente foi embora pra nunca mais voltar... outros ficaram de teimosos que eram...
O governo brasileiro não queria nem saber do Acre. Se havia sido assim antes, quando o Acre ainda dava dinheiro, imagina agora que só dava prejuízo pra Capital, o longínquo Rio de Janeiro...
Mas..., como se diz nas mais velhas histórias... É no lodo apodrecido dos pântanos, dos igapós, que surgem as mais belas flores... sejam elas flores de Lótus, sejam Vitórias Régias... É assim que é... sabedoria antiga...

O personagem Raimundo Doido que anunciava os filmes do Cine Recreio (aqui interpretado por Ivan de Castela) - foto Val fernandes

Pois foi assim que, em 1934, surgiu uma pequena alegria no horizonte acreano... Os novos ares da Revolução de Getúlio finalmente chegavam por aqui e os acreanos pela primeira vez experimentariam o doce sabor da democracia elegendo deputados para falar por nós lá na distante capital... E... neste mesmo ano nasceria por aqui um menino que tantas alegrias ainda nos daria...
Mais um ano, 35, e seria a vez da menina que estamos homenageando hoje chegar a esse mundo acreano, lá no antigo seringal São Luiz do Remanso... pra logo vir pra cá, pra cidade, pro Quinze, pra crescer e frutificar...
E nem bem o mundo mudava, em plena convulsão da nova grande guerra que chegava, numa quarta feira de dezembro de 39, vinha a um Acre, novamente rico por sua borracha, o terceiro de nossos ilustres homenageados, o ultimo a chegar, mas justamente aquele que seria encarregado de nos contar o que viu desde então...
Portanto, Senhoras e Senhores, sem mais delongas... quero dizer que esta noite aqui estamos pra falar de três personagens... três filhos diletos da cidade que amamos...

Uma mulher que aprendeu e... por bem saber... vive a ensinar...
Um homem que sabia escrever e... com que arte e alegria nos descreveu...
Outro homem que traz a musica dentro de si e... por isso toca... e como nos toca...


Os tres homenageados - João Donato, Guajarina Margarido e Artur Leite, representando seu pai Zé Leite - foto Adonay Melo

E por falar em musica... não sabemos, na verdade, se estes três personagens se conheceram de fato... Mas certamente estiveram juntos muitas vezes, ainda que não soubessem uns dos outros. Afinal, não havia muita coisa pra se fazer em Rio Branco naqueles idos dos anos quarenta em que cresceram e se tornaram gente...
É que aos domingos, na praça, sempre havia uma retreta bem executada pela Banda da Guarda Territorial e sou capaz de jurar que por lá eles se encontraram... num dia qualquer de suas vidas... e como estamos aqui pra lembrar... pedimos que a Banda da Policia Militar, descendente direta daquela outra da Banda da Guarda..., nos lembrem... quem sempre fomos e... orgulhosamente, com nossos pés rachados, ainda somos...
(Neste momento a Banda da PM executou o Dobrado Capitão João Donato e, logo em seguida o Hino Acreano)

OBS: Ah sim! E para quem não pôde ir à cerimônia, mas gostaria de ter ido, aviso que a TV Aldeia, que transmitiu o evento ao vivo para todo o Estado do Acre, promete exibir uma reprise na próxima terça-feira (17/01), às 21 horas.

sábado, 7 de janeiro de 2012

O mundo todo é aqui

(Entre o Paraná dos Mouras e Porto Walter)

Neste ano viajei por boa parte do interior do Acre. Agora já conheço todos os municípios acreanos. Isso me levou a tentar escrever uma série de artigos para outra coluna de jornal que estava planejando. A tal coluna aconteceu, a série que iria se chamar “Viagem ao interior do Acre” não. Assim, pra abrir o ano da coluna Miolo de Pote, hoje trago o artigo que deveria ter inaugurado aquela série.

“Acreditar em Mil Acres,
Na força dos fracos,
Ficar por aqui...”
(Beto Brasiliense)

Assim que chegamos ao lugar da reunião vimos um tranquilo senhor que aguardava na porta do auditório. Um rápido olhar era capaz de denunciar que aquele homem, que atendia pelo original nome de Javan, já havia vivido muito e que nem sempre as coisas lhe tinham sido fáceis. Um olho castigado, quase fechado, dava uma estranha assimetria ao seu rosto repleto de rugas e marcas do tempo e contrastava com o corpo bem ereto, sem sinais aparentes de fragilidade. Ainda assim possuía tal brilho no olhar e no inacreditável sorriso que não dava margem a duvida quanto à dimensão de sua dignidade. O que logo foi confirmado quando lhe perguntamos sua idade: 94 anos.
A conversa iniciada na porta se estendeu até o interior do auditório, enquanto as pessoas chegavam e se acomodavam para o programado encontro com os dois senadores. E mesmo sentados distantes um do outro o Senador Jorge Viana e Seu Javan continuavam conversando, quase sem perceber a grande movimentação de pessoas que acontecia ao redor. Até que o Senador não resistiu e se levantou para ficar novamente junto dele.
E, em poucos minutos, Seu Javan contou uma parte de sua longa trajetória.
- Seus pais vieram de onde?
- Vieram do Pará.
- É mesmo? Não é fácil encontrar pessoas do Pará aqui pelo Acre. Eles vieram quando?
- Em 1895. Vieram para o Paraná dos Mouras e por lá se estabeleceram.



- E como o senhor veio parar aqui em Porto Walter?
- Bem, eu tinha vinte anos, lá onde a gente morava não tinha mulher e eu queria ganhar a vida. Por isso vim pra cá, trabalhar com seringa que naquele tempo dava muito.
- É mesmo? Era movimentado, então?
- Rapaz era bom demais, só de vapores grandes vinham cinco todos os anos...
E, enquanto Seu Javan recitava de memória, sem titubear, os nomes dos tais vapores grandes, o povo espalhado na sala, agora cheia, começava a ficar impaciente com a extensão daquela conversa que parecia não ter fim. Refletindo o momento, o Prefeito decidiu então ir começando as falas no microfone. Mas nem isso foi capaz de interromper a conversa dos dois.
- E o senhor já foi a Rio Branco Seu Javan?
- Que nada menino. A cidade maior que conheço é Cruzeiro do Sul.
Neste momento, nem o som dos alto falantes que se sobrepunham as todas as outras vozes, foi capaz de apagar a surpresa do rosto do Senador que já teve a oportunidade de viajar por meio mundo.
- Quer dizer que o senhor nunca saiu daqui?
- Não meu filho.
- Mas... O senhor quer ir a Rio Branco? Eu o levo...
- Quero não meu amigo. Tô feliz por aqui mesmo...
Neste ponto se tornou totalmente impossível continuar a conversa. Primeiro porque todos no auditório estavam pra lá de ansiosos com tanta espera e depois porque o impacto da convicção com que Seu Javan via o mundo era avassalador e não deixava espaço para outras considerações. Ele acabara de revelar, com imensa simplicidade, o mesmo tipo de conhecimento profundo que já foi expresso há milhares de anos atrás, por outro grande sábio, lá no distante oriente: “A noção de que cada ser no mundo é um mundo em si.” (Confúcio).


Também pudera. Como é imenso o mundo de Seu Javan! Tem o tamanho da grandeza do Juruá e de suas florestas que se estendem pra muito alem de onde alcança a vista. Um mundo tão incomensurável que poucos devem ser capazes de efetivamente conhecê-lo no espaço de uma vida...
Era fim de tarde quando deixamos Porto Walter. Nos meus ouvidos ainda ecoava o olhar, o sorriso e as palavras de Seu Javan que, generosamente, acabara de ensinar o sentido de ter uma boa vida. Impossível não entender, então, que pra ser feliz não precisamos de nada daquilo que nos acostumamos a desejar em nossa tragicômica sociedade de consumo desenfreado, mas apenas amar nosso lugar e dar valor a cada pequena conquista da vida.
Grande Seu Javan!