sábado, 27 de agosto de 2011

Manoel, o audaz


Um dos principais personagens da história acreana permanece como um ilustre desconhecido. Sobre ele não se sabe quase nada de concreto, apesar das muitas lendas que por aqui circulam. Espero um dia ainda poder pesquisar e escrever sobre a vida desse homem a quem o Acre deve tanto. Enquanto isso não acontece, segue um pequeno aperitivo só pra sentir o gosto.

O Grande descobridor das terras acreanas se chamava Manoel, mas não era português. Realizou seu maior empreendimento navegando águas desconhecidas, mas nunca conheceu uma caravela. Não era branco, mas caboclo escuro, quase negro. Não era europeu, mas amazônida nascido no Manacapuru. Não deixou registros próprios porque não sabia escrever, mas deixou seu nome inscrito na memória e na história da Amazônia ocidental.
À semelhança dos navegadores europeus do século XVI, Manoel Urbano da Encarnação, em pleno século XIX, se lançou no desconhecido, sempre ao arrepio das correntes, rio acima, percorrendo os vales do Purus, do Iaco, do Aquiri, do Iquiri e de outros rios, igarapés e varações para se tornar quase uma lenda.


No principio da década de 1850 a administração da Província do Amazonas nomeou Manoel Urbano da Encarnação e João da Cunha Correa como diretores de índios do Purus e do Juruá respectivamente. O governo amazonense buscava organizar e taxar a atividade dos coletores de drogas do sertão que, provavelmente, já percorriam livremente essa região desde o principio do século XIX. Além disso, Manoel Urbano tinha também a missão de percorrer os rios que cortavam a região para averiguar a possibilidade de ligação entre os afluentes do Purus e os do rio Madeira, que se confirmada poderia dar origem a uma nova rota comercial desde o sul do continente americano.
É verdade que Serafim Salgado já havia subido o Purus em missão oficial de reconhecimento, em 1851, mas foi pouco além da foz do rio Iaco, quase sem entrar em terras acreanas. Coube verdadeiramente a Manoel Urbano da Encarnação a primazia de percorrer essas terras desconhecidas estabelecendo o primeiro contato formal com os povos indígenas da região. E, diferente de outros exploradores de nossa história, Manoel Urbano passou a estabelecer com esses povos uma relação de respeito e cooperação.
Não existe nenhuma referencia à violências ou traições contra os índios ocorridas nos rios do vale do Purus nas três décadas durante as quais Manoel percorreu a região guiando cientistas, exploradores e os primeiros seringueiros brasileiros a chegar à região. Pelo contrário, enquanto Chandless se refere a Manoel Urbano como um caboclo com grande inteligência natural, Castelo Branco menciona o fato de que ele era comumente chamado pelos índios do Acre como o Tapauna Catu, o negro bom, aquele em quem se pode confiar.



Manoel Urbano era mesmo diferente. Ele não se limitou a ser explorador e diretor de índios, foi também um povoador estabelecendo assentamentos permanentes de base indígena que serviram como ponta de lança da ocupação nacional da região. Entre seus muitos filhos, Braz Gil da Encarnação e Leonel da Encarnação se fixaram próximo à boca do Ituxi/Iquiri e outros pontos do Purus. Ou seja, Manoel Urbano permaneceu durante muitos anos percorrendo essa imensa região. Não havia prático mais hábil na navegação dos rios repletos de balseiros e rebojos traiçoeiros. Não havia homem mais famoso no Purus do que o Tapauna Catu, do qual diziam ter cento e vinte anos, ou mais. É que aos poucos Manoel Urbano da Encarnação foi deixando de ser apenas um homem comum e se tornando uma verdadeira lenda nesses rios e barrancos, um mito da floresta.

sábado, 20 de agosto de 2011

Machu Picchu – Um século (II)

(ou: Mistérios de uma jovem alma)

Já não me lembro o dia exato em que cheguei a Machu Picchu. Lembro apenas que isso faz vinte e cinco anos e que foi um dia inesquecível. Afinal “naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos e um jeito de herói, era mais forte e veloz que qualquer mocinho de cowboy.”

Acredito que 1986 foi um ano diferente para muitos brasileiros. Pra quem não se lembra, ou ainda não estava por aqui, basta recordar que este foi o ano do plano Cruzado instituído pelo Presidente José Sarney para tentar acabar com a enlouquecida hiperinflação que parecia não ter limites.
Na verdade o Brasil ainda vivia o rescaldo da enorme frustração que havia sido a derrota das “Diretas Já” e a morte de Tancredo Neves. Mas por breves momentos, o tabelamento de preços imposto pelo Plano Cruzado parecia que poderia sim resultar no fim do dragão da inflação. A tal ponto que muitas donas de casa brasileiras foram convertidas em “fiscais do Sarney” para impedir que as famigeradas máquinas de remarcação voltassem a aumentar o preço das coisas. Mas, infelizmente, durou pouco o sonho. Só o tempo que os interesses político-eleitorais demoraram para ferir de morte o tal plano econômico de forma a garantir mais poder ao PMDB do Sarney de triste memória para todos nós que lá estávamos. Porém, antes de seu fim, esse mesmo Plano Cruzado abriu uma janela de novas oportunidades que nos apressamos em aproveitar. Afinal, a gana de viver mais e mais é uma das melhores qualidades dos jovens, não é?
Acontece que nesta época a diferença entre o dólar oficial e o paralelo era imensa e só podia comprar dólar pelo cambio oficial quem saísse do país de avião. Bolamos um plano perfeito então. Como queríamos ir à Machu Picchu, eu e alguns amigos da Faculdade, a gente fez as contas para sair por via aérea do Brasil pela menor rota possível - por conseguinte, com o menor custo possível - e só a diferença do cambio já pagaria boa parte de nossa viagem.
Não deu outra. Fomos de ônibus até Foz do Iguaçu onde pegamos um avião para Puerto Stroessener, no Paraguai, e assim nos habilitamos a pegar U$1.000 cada um, pelo preço galinha morta do cambio oficial. A conseqüência imediata disso é que já começamos nossa viagem por uma rota completamente louca.
A partir do Paraguai tivemos que cruzar o norte da Argentina, pela bela região de Salta, para entrar no sul da Bolívia e atravessar este belo e pobre país até alcançar o Peru ao norte. Viajávamos em cinco. Eu, Waltinho, Tereza, Lili e Carlinha. Todos nós estudantes da mesma Universidade, mas cada um de um curso diferente, um grupo meio, digamos, exótico. Eu namorava Tereza e Waltinho namorava Lili, o que deixava Carlinha solta pra arrumar namorados ao longo da viagem e assim conseguir pequenas vantagens (como refeições por conta dos caras) em alguns dos lugares por onde passávamos. Mas, infelizmente, seria impossível contar aqui tudo o que vivemos naqueles dias extraordinários, precisaria do espaço de um livro inteiro e não de apenas um artigo para contar sobre as belezas e as tragédias de nossa encantadora América Latina. Ainda mais porque éramos jovens e, na estrada, livres. E tudo é mais bonito e mais intenso quando se é jovem e livre. Alguém duvida?



Da esquerda pra direita sentadas: Tereza, Carlinha e Lili; em pé: Waltinho e eu - Fotografados por um lambe-lambe das ruas de La Paz



Bueno. O certo é que depois de muitas peripécias chegamos à Cuzco e decidimos fazer o Caminho Inca ao invés de conhecer Machu Picchu através do trem que todos os dias ali despeja milhares de turistas de todas as partes do mundo. É que fazendo o Caminho Inca, além de conhecermos diversas ruínas ao atravessar as altas montanhas andinas, ainda poderíamos, se bem programados, chegar a Machu Picchu antes das dez horas da manhã, hora em que começam a chegar os milhares de turistas que vão de trem. E, segundo o que ficamos sabendo, era tanta gente que desembarcava na cidadela perdida dos Incas que visitá-la depois das dez não tinha a menor graça. Ou seja, tudo que queríamos era Machu Picchu só pra gente. Afinal, a ousadia parece ser outro traço indelével da juventude.
Porém, no dia anterior à viagem, exatamente na hora de alugarmos os equipamentos (já que em Cuzco se pode alugar barraca, saco de dormir e todo o mais necessário para a caminhada), as meninas arrumaram diferentes justificativas pra não ir (dor de cabeça, TPM e outras cositas do gênero). No fundo, no fundo, sabíamos, todos, que era só cagaço mesmo. Uma pena, porque decidimos ir assim mesmo, eu e Waltinho.
Já no trem conhecemos muitos outros mochileiros que iam também fazer o Caminho Inca e colamos com uma Finlandesa que viajava sozinha por nome Irene e um cucaracho brasileño, que estava a tanto tempo na estrada que já nem conseguia mais falar português direito e se expressava misturando inglês, português e espanhol. Um novo e ainda mais exótico grupo de quatro pessoas que nos três dias seguintes se ajudaram a vencer a altitude, o cansaço extremo, o frio que congelava nossos ossos. Afinal, a capacidade de fazer grandes e sinceras amizades de repente, também parece ser uma capacidade fácil e natural quando se é jovem.
Ainda bem, porque logo descobrimos que o trem não parava pra quem fosse fazer o caminho Inca poder descer. Ou seja, teríamos que nos jogar do trem em movimento ao chegar o km 88 (nunca mais esqueci). Assim, desde o início ficou claro que se não ajudássemos uns aos outros aquela aventura poderia não terminar bem. E assim foi feito. Três dias uns carregando a mochila uns dos outros quando o esgotamento batia, mas também trocando impressões e sensações sobre este caminho que é uma das mais fascinantes experiências que um ser humano pode viver.



Perigoso trecho do Caminho Inca (Foto Sergio Neves - AE)


Vocês não imaginam a beleza das montanhas e picos nevados que atravessamos então. Os Incas haviam sido tão caprichosos ao construir seus caminhos, que chegaram à sofisticação de trazer pedras brancas de muito longe só para pavimentar o caminho em meio às rochas negras e garantir que seus correios pudessem transitar dia e noite com facilidade. Túneis, fortalezas em ruínas, pontes suspensas, escadas esculpidas nas pedras, fontes de água cristalina no cume dos “passos”, enfim... Não se pode ter uma idéia completa da grandiosidade e da engenhosidade dos Incas só visitando Cuzco.
Mas, por outro lado, não posso mentir, não é fácil não. É muito, muito, difícil caminhar aos quatro mil metros de altitude já que o ar é extremamente fino e o oxigênio parece não fazer parte dele, ao mesmo tempo em que as pernas muitas vezes insistem em não suportar o peso do próprio corpo, tamanho o cansaço.
Em compensação, é indescritível a felicidade que se sente ao, depois de longos e penosos três dias, chegar à Porta do Sol e vislumbrar do alto, pela primeira vez, Machu Picchu. Só posso dizer que é como se naquele momento pudesse finalmente ver - não com os olhos do corpo, mas com os olhos do espírito - o poder e a eternidade em forma de montanhas e mistérios inesgotáveis. Beleza e encanto em sua expressão mais pura. Afinal, a vida é mesmo mágica diante de olhos jovens. Ou alguém não acredita???




Vista de Machu Picchu desde a porta do sol (foto de Sergio Neves - AE)

sábado, 13 de agosto de 2011

Histórias d'alem fronteira

Os poderes constituídos não conseguem compreender o espírito da fronteira. Para os governos em geral a fronteira é um problema, é o limite e com ele a sempre presente possibilidade da transgressão dos limites. Limite da Pátria, limite da moeda, da língua, da cor, do gesto, do jeito, limite da alma, enfim. É preciso, portanto, cuidar (o que na maioria das vezes significa apenas proibir).
Em geral, não vemos o que está lá e cá ao mesmo tempo, o que transpira de um lado ao outro, o que une, o que liga, o caminho que leva e traz, o limite do outro, do novo, do distinto, o limiar que junta o início e o fim, o que transcende tudo aquilo que não pode ser limitado. Neste sentido, a fronteira é a alma dessa terra limite.
Hoje ouvi uma nova história sobre a fronteira. Uma boa história que preciso dividir com vocês. Adianto que se trata de uma história prosaica, simples, em alguns momentos até mesmo de palavreado impróprio, pelo que já peço perdão antecipadamente. Mas, também garanto que se trata de uma daquelas histórias singulares, que revela a complexidade oculta por trás dos cartões postais, ou no nosso caso, o que esta para além das lojas coloridas que nos vendem importados piratas da China, dessa derradeira relíquia comunista que anda travestida em grande e universal consumista. Síntese perfeita de nosso louco tempo, pré-apocalipse.
Mas... Sem mais enrolação, com vocês a história que me encantou e me fez sorrir, hoy dia.


A Triste e Trepidante Balada de Tio Ivo

Ele era mais um dos milhares de bolivianos(as) nascidos de mistura com brasileiros(as) que passaram toda a vida do lado de lá da fronteira. Um bom homem era Tio Ivo, trabalhador, íntegro, sincero, um bom boliviano. A única coisa que ainda se permitia era tomar uns tragos de vez em quando.
Na verdade, de vez em sempre. Todo fim de semana bebia até ficar borracho. Depois sossegava Tio Ivo, que era um bom homem. Não chegava a ser alcoólatra, apenas bebia nos fins de semana.
Na verdade, era mesmo alcoólatra, porque bebia pra valer, todo fim de semana. Mas era um bom boliviano e disso ninguém duvidava.
Mas, naquele dia, ficou bravo Tio Ivo. Outro golpe de estado estava bagunçando tudo na Bolívia. De novo, novamente, outra vez, pensava revoltado. Todo ano golpe militar, golpe, golpe atrás de golpe. Não teria fim nunca essa triste história de seu país sofrido?
Neste dia então, depois dos tantos tragos regulamentares, inesperadamente, se embrabeceu Tio Ivo, resolveu sair às ruas e declarar toda sua indignação pra quem quisesse escutar. Bradava assim:
- Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Quem via aquela cena, nem podia acreditar no que via. Não era apenas um grito, um protesto qualquer. Tio Ivo falava do fundo de sua alma. Estava cansado de ver seu país desse jeito, maltratado por autoridades que se sucediam no poder através da força e da sempre renovada tragédia de seu povo. Andava, com os passos incertos de todo e qualquer bêbado, Tio Ivo, e de repente parava pra tornar a bradar...
- Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Estava cansado. Definitivamente cansado de ver seus conterrâneos ter que atravessar as águas do rio Acre a nado, fugindo para o Brasil, a cada novo golpe. Todo ano, golpe de novo e a mesma coisa, lá se vão a nadar pro outro lado meus amigos. Ano que vem, de novo, golpe e lá sem vão os inimigos de meus amigos a nadar pro outro lado desse rio chamado Acre. Outra dor, outra indignação, outra vez:
- Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Tanto fez Tio Ivo que, como não podia deixar de ser, chamou a atenção dos soldados em patrulha pelas ruas em razão do estado de sítio em que se encontrava a Bolívia naquela tarde de Cobija. E não deu outra. Vieram os soldados, truculentos, a interrogar: Mas! Que passa, Hombre! Que Passa!!! Ao que não teve duvidas Tio Ivo que, duplicando o tom e o volume de sua voz, redobrou a força e a dor de seu brado de protesto.
- Me caaaaaago em Bolívia!!!!!! Caraaajoooooo!!!!
Os militares - nitidamente collas, filhos do altiplano, ao ver aquele homem grande que, de muito branco, estava em vermelho de fogo, indignado, sob o sol escaldante da tarde de Cobija, legítimo filho dessa mistura que a floresta produziu ao longo dos séculos últimos - não também não tiveram duvidas. Prenderam Tio Ivo. Onde já se viu tamanha ofensa à Pátria. Ainda mais em pleno Golpe de Estado...


Quase tão rápida quanto aquela prisão, percorreu as ruas quentes da tarde de Cobija, a notícia, que, como era de se esperar, logo foi bater no ouvido de Tia Vitória. A mulher de Tio Ivo. Como és?!!!? Preso mi Ivo? Eso no puede ser, me voy a ver eso ahora, ahorita!
Um metro e meio de pura valentia Tia Vitória. Pense numa mulher braba. Decidida - um metro e meio pleno, bem cheio e medido, de autoridade - partiu para o quartel Tia Vitória. Já na porta, o soldado bem que tentou lhe barrar, ao que ouviu assustado: Quiero hablar con el Comandante! E era tanta firmeza que o soldado não lhe pôde impedir de prosseguir. Logo acudiu o Oficial do dia tentando por ordem na casa. Mas de nada resultou. Me llame el Comandante! Mas, Señora... No me importa, quiero hablar con el Comandante y solo con el Comandante, ahora!
Não demorou pra se convencerem que não havia outro jeito de acalmar Tia Vitória e logo apareceu El Comandante de la tropa. Atônito, talvez até mesmo intimidado, por tamanha autoridade em tão reduzido espaço de gente, indagou a seus comandados: Más que sucedió??? E coube ao Tenente explicar o motivo de tão justificada prisão. El señor Ivo estava en la calle del ciudad a gritar insultos contra nuestra pátria. El dijo, con su pérdon mi Comandante: Me cago em Bolívia!!!!!! Carajo!!!!
Mas antes mesmo que o Comandante pudesse olhar para baixo, no rumo da pequena mulher, com reprovação. Tia Vitória desancou a comandar... Más hombre. Ivo és un buen hombre. Aquí vive, aquí trabaja de sol a sol, y usted, ahora, desea que Ivo vaya a la orilla del rio, coja una catraia, cruce el rio y vaya a cagar em Brasiléia? No, no, no. Ivo vive aquí em Bolívia, tiene que cagar aquí mismo en Cobija. Suelte mi Ivo ahora, ahorita. VAMOS!
Ao que o comandante, olhando firme, com indisfarçável ar de reprovação, para o Tenente, não demorou em decretar... Andelante hombre, lo que está esperando, suelte Dom Ivo. AHORA!
E lá se foi... com a moleza típica dos borrachos, naquela tarde quente de Cobija, Tio Ivo, seguindo, capisbaixo, aquele metro e meio de pura valentia e autoridade, chamado Tia Vitória.

Obs: Ganha um exemplar deste jornal o primeiro que souber dizer quem me contou, há pouco, essa história... e ainda dou pistas: Dom Ivo é tio deste nuestro amigo, meio cholo, meio Acre que tantos de nós conhecemos e gostamos por demais... e que, há algum tempo atrás, nasceu de novo, para nossa felicidade (agora ficou fácil!!!)