sábado, 25 de setembro de 2010

Eram os Deuses Arqueólogos? (I)

Semana passada aconteceu em Manaus o segundo EIAA, Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica. Graças à reunião de pesquisadores de todo o Brasil que atuam nas mais diversas áreas da Amazônia, bem como de alguns dos principais pesquisadores estrangeiros, foi possível, além de atualizar as informações sobre as pesquisas em curso, perceber claramente os tortuosos caminhos que a arqueologia vem traçando em nosso país e no mundo atualmente.


A arqueologia é um ramo do conhecimento muito especial. Possui uma trajetória algo diferente da maioria das outras ciências contemporâneas. Com o advento do evolucionismo darwiniano e as missões de busca por nossos ancestrais nos vales da África, Europa e Ásia, a arqueologia logo se confundiu com as ciências da natureza.
Os estudos de antropologia física dos hominídeos, associados à definição de tipos taxonômicos para classificação de artefatos pré-históricos - fortemente baseados nos métodos utilizados para definição de gêneros, famílias e espécies de seres vivos - bem como a necessidade de considerar as culturas pré-históricas em estrita relação com os ambientes onde se desenvolveram, contribuíram decisivamente para essa aproximação.
Entretanto, a arqueologia é, ao mesmo tempo, a ciência responsável por estudar a trajetória das sociedades humanas ao longo de sua existência, antes do advento dos documentos escritos. E neste sentido a arqueologia é história, e, por isso, integra também o corpo de conhecimentos das ciências sociais e humanas.
Esta essencial ambigüidade da arqueologia ora favorece esta ciência com um vasto instrumental que percorre quase todas as ciências da natureza e quase todas as ciências humanas. Ora a torna refém de praticas cientificistas que aprisionam a pesquisa em uma pretensa e anacrônica neutralidade que dificulta a apropriação dos avanços desta ciência pela sociedade de modo geral.
Às vezes, chego a ter a impressão que alguns arqueólogos chegam a sentir certo prazer em manter essa postura de distanciamento. É como se estes fossem verdadeiros semi-deuses, detentores de um conhecimento inacessível aos mortais comuns. Uma postura que mesmo entre as ciências da natureza já foi ultrapassada há muito tempo, já que as forças produtivas baseadas na biotecnologia e a necessidade de adequação de nossa sociedade às radicais mudanças ambientais e climáticas contemporâneas se encarregaram de transformar o caráter e a aplicação que esses desenvolvimentos científicos adquirem perante a sociedade em geral.
É claro, mas não custa ressaltar, que não quero generalizar, nem tampouco desconhecer a grande quantidade de arqueólogos que possuem forte compromisso social e profundas preocupações e práticas humanistas. Mas também não posso deixar de reconhecer que, infelizmente, em nosso país ainda existem muitos arqueólogos que se colocam nessa condição de cientistas neutros (como não tivessem nenhuma responsabilidade) diante dos graves problemas e questões políticas que afligem a sociedade pós-moderna globalizada.

Nem precisamos ir muito longe para compreender as conseqüências dessa postura assumida por parte da comunidade arqueológica brasileira. Uma notória dificuldade em transmitir os resultados das pesquisas de forma compreensível, sem derrapar para imagens do tipo “Indiana Jones”, “Eram os Deuses Astronautas”, ou “Civilizações misteriosas perdidas no coração da floresta”; um condicionamento acrítico em relação às políticas publicas já definidas para a prática arqueológica em nosso país ou às exigências das empresas responsáveis pelas grandes obras de infra-estrutura que, por força da legislação ambiental, são obrigadas a realizar a chamada “arqueologia de contrato”; uma injustificável ausência de posicionamento político claro em relação à questões muito contundentes, tais como: os graves problemas sociais e culturais enfrentados pelos povos indígenas da Amazônia e da América Latina, a ocupação urbana desordenada e a especulação imobiliária, responsáveis pela destruição de boa parte de nosso patrimônio arqueológico, e assim por diante.
Devo confessar que, para mim que hoje atuo mais no campo da gestão pública do que da pesquisa acadêmica, essas constatações causaram um profundo estranhamento.

Em Tempo:Deu gosto de ver a força e o prestígio que a candidatura da Marina tem em Manaus. Chega a ser impressionante o fato de que todos os taxistas com quem tive a oportunidade de conversar foram unânimes em afirmar que vamos ter segundo turno entre a Dilma e a Marina. E como todos sabem, nenhuma categoria profissional é melhor porta voz do pensamento de uma cidade que seus taxistas...

sábado, 11 de setembro de 2010

Antigas novidades da política acreana

(Mutações V)

Esta talvez seja uma das campanhas políticas mais chatas que eu já vivi. Não tem comício, nem showmício. Não tem os tradicionais bêbados no pé do palanque, nem camisa e nem boné com que carregar as cores de nossos candidatos. Mas, como as coisas não podem mesmo mudar tão rápido, ainda podemos assistir tragicômicos episódios em forma de socos e pontapés na tv, montes de dinheiro na caixa de papelão e tradicionais rivalidades sem as quais a política não teria a menor graça.



Estava eu entretido com as obrigações de todo dia no velho seringal urbano em que trabalhamos nós da cultura de Rio Branco, quando me chega de visita um dos antigos senhores acreanos que de quando em vez aparecem pra trocar uma prosa. Afinal, nada mais característico da cultura acreana do que praticar a boa e tradicional arte de lembrar e contar o lembrado.
Pois me disse ele que esta semana esteve num badalado evento social que reuniu a fina flor da rapiocagem local, como diria outro amigo acreano também antigo, e o que viu por lá o fez lembrar de um causo que lhe foi contado faz muito, muito, muito tempo...
É que, como todo mundo sabe, na época do Acre Território, lá pelos idos dos cinqüenta, a política acreana era dominada por Guiomard Santos e Oscar Passos. E os dois generais/caciques políticos, donos do PSD e PTB respectivamente, infalivelmente acabavam também sendo os donos absolutos das duas únicas vagas de deputado federal que o Acre tinha no Congresso Nacional.
Assim, neste tempo, o Acre todo se dividia entre Pessedistas e Petebistas, como antes já haviam se dividido entre os legionários e os construtores (também conhecidos como corocas e urucubacas). E a disputa era por demais acirrada, muitas vezes chegando às raias da insensatez. Aliás, bastante diferente do que podemos observar na atual política acreana???!!!
Ocorreu então que, no meio de uma dessas acirradas campanhas, Oscar Passos decidiu minar as forças de Guiomard em seu próprio reduto eleitoral. E a bordo de seu indefectível jipe o petebista veio até a longínqua colônia do São Francisco. Naquela época, uma verdadeira aventura já que o caminho de terra não facilitava a vida de ninguém. Pense na ladeira do São Francisco, agora pense numa dificuldade monstra.
E em pleno reduto guiomarista, que era a “colonha” São Francisco, Oscar Passos desandou a destratar seu adversário político: “Porque o Guiomard está louco. Onde já se viu querer transformar o Território Federal em Estado. Será que ele não sabe que sem o dinheiro do governo federal o Acre tá lascado? Isso é uma verdadeira doidice...”
E tantas Oscar Passos disse e redisse que um dos moradores da Colonha ficou verdadeiramente indignado e logo decidiu: “Não. Isso não pode ficar assim. Meu cumpadre Guiomard precisa saber disso. Vou lá na cidade falar com ele... Ele precisa saber o que essa féla da mãe anda falando dele...” E lá se veio o pobre homem, patinando no barro, horas a fio, já que, diferente do General Oscar Passos, jipe ele não tinha. Mas mesmo diante de tantas dificuldades, vinha munido de tamanha indignação que não se permitia esmorecer.


Mal chegado no centro da cidade o homem rumou direto pro Hotel Chuí, que então era a casa de todos eles quando estavam no Acre, Guiomard, Oscar e tantos quantos faziam da política no distante Acre seu modo de vida. Logo foi informado que Guiomard se encontrava salão do Hotel.
Qual não foi a surpresa do homem ao se deparar com Guiomard sentado à mesa, num conversê danado, com o Oscar Passos. O pobre homem não podia acreditar no que seus olhos viam, tanta era a risadagem dos dois generais/caciques. E mais abismado ainda ficou ao pescar um trecho da conversa dos dois, justo na hora em que Oscar dizia ao seu arquiinimigo:
- Pois é tive lá no seu reduto, no São Francisco, disse poucas e boas do teu projeto e descasquei pra cima de ti... Há, Há, Há!!!
Ao que de bate pronto respondeu Guiomard Santos, em meio à outra grande risada:
- Tem problema não. Saiba que ainda ontem eu estive lá no Quinze (reduto forte de Oscar Passos) e falei muito pior de ti...
E logo estavam os dois se rindo juntos... diante do atônito homem exausto pela difícil caminhada até ali e, pior, enfurecido pela cena que estava presenciando. Não lhe restou outra alternativa, então, senão se aproximar da mesa dos poderosos generais e descascar pra cima de ambos, que era a única forma de não perder de todo a viagem...
Pois bom (como diria Seu Agnaldo Moreno, outro ferrenho pessedista)! Esta semana, ao chegar ao lançamento do novo livro de um dos principais jornalistas do Acre atual, nosso antigo amigo logo se lembrou da história brevemente contada acima, ao perceber tradicionais adversários políticos acreanos ali reunidos em animadas rodas de conversa. Quem quer que os vissem assim, inadvertidamente, em meio a tanto conversê e risadagem, não poderia imaginar que esses mesmos políticos protagonizam tantas e tão profundas brigas diárias na atual disputa eleitoral.
Eu, de minha parte, fiquei embatucado e me perguntando: Será isso bom ou ruim???? Confesso que não sei responder... Só sei que a cultura política acreana sempre foi e ainda é assim...

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Ruínas*

(Mutações IV)

Esta semana os jornais acreanos noticiaram que finalmente entrou em operação a Alcobrás. Por isso me lembrei de um texto que escrevi há alguns anos atrás que tratava, não só daquela fantasmagórica usina abandonada no meio do mato, como também de seu antecessores os Seringais Itu e Palmares.







A Amazônia, em sua infinita imensidão, sempre foi o lugar dos sonhos dos homens. Indomada, inóspita, misteriosa, lugar dos reinos encantados do El Dorado, do Paititi e das mulheres guerreiras. Por isso os homens que para cá vieram em todos os tempos traziam na bagagem a gana dos aventureiros que teimavam em tornar reais seus sonhos e com isso ganhar fama e riqueza.
Foi assim que me senti ao entrar no impressionante conjunto de ruínas e abandono em que se transformou o Seringal Palmares, mais tarde conhecido como ALCOBRÁS. Poucos metros após passar por uma carcomida e insuspeita porteira vi surgir à minha frente enormes galpões de concreto e metal completamente abandonados, ainda que em surpreendente bom estado; várias carcaças de ônibus e automóveis que pouco ou nunca foram usados; cinco prédios de dois pavimentos que iriam ser usados como vila de operários; toneladas de adubo, calcário e outros produtos químicos se esvaindo aos poucos a cada chuva que lava caudalosamente o chão contaminando as nascentes do Iquiri que, segundo se diz, nasce por ali; tudo fruto da louca idéia de implantar uma usina de álcool em plena floresta amazônica.
Mas, o mais surpreendente de tudo foi perceber a sobrevivência de diversos prédios de madeira (sede, escola, igreja, barracão de mercadorias, queijaria, etc.) que compunham o núcleo de um dos maiores e mais importantes seringais do Vale do Acre, o mais rico dentre todos os vales acreanos no início do século XX.
Era uma visão extraordinária. Encontrar ali, no meio daqueles milhares de pés de cana que teimavam em nascer misturados ao capim e à capoeira, a sede do antigo Seringal Palmares de pé, ainda que de forma precária. Logo a curiosidade substituía a surpresa e tive que vencer, com muito esforço, a altura que me separava do piso de madeira de um legitimo barracão de seringalista, os famosos coronéis de barranco, graças a uma escada que não mais existia.
Inesperadamente ali dentro encontramos poucos, mas consistentes, vestígios de um passado de fausto e glória. Uma grande geladeira “Eletrolux” com pés altos, que a deixavam a mais de dois palmos de altura do chão (mais fácil de limpar do que nossos modelos modernosos, diga-se de passagem), mais parecendo um cofre forte de tão maciça. Fiquei imaginando que deveria ter custado uma fortuna e muito suor para chegar ao interior do interior do Acre.
Logo meu olhar foi atraído para as paredes inclinadas e carcomidas da outrora espaçosa casa cujo estado de ruína não conseguia ocultar a ótima qualidade da madeira com que havia sido construída. O forro saia-camisa tinha sido retirado da maior parte da grande casa, mas ainda resistia em alguns dos quartos, e revelava o capricho dos mestres carpinteiros ao construir a moradia de um dos mais poderosos seringalistas que por aqui se estabeleceram. O banheiro interno da casa, luxo que poucos possuíam no Acre de então, revelava surpreendentes obras de alvenaria e uma carcomida rede de grossos canos de ferro, como que nos alertando que o dono daquela casa não havia poupado esforços e nem despesas para de ter conforto em meio à imensidão da floresta amazônica.
É verdade, a história conta que o velho Honório Alves das Neves construiu, ao longo de anos de árduo trabalho, uma propriedade imensa, quase um país. Os seringais Palmares e Itú somados ocupavam uma enorme área, como a maioria dos outros gigantescos seringais de uma época em que a demarcação era feita em estradas de seringa, ao invés de hectares.
O Itú, à margem do rio Acre, era a porta de entrada do reino do Coronel Honório. Por ali chegavam as mercadorias trazidas pelos vapores que vinham do Amazonas fazendo a linha do rio Acre. Essas mercadorias eram depois distribuídas para dezenas de colocações de seringueiros pelos comboios de burros que cortavam a floresta por estreitos varadouros.
Quanto ao Palmares a história era diferente. Tratava-se de um seringal de centro que ocupava uma vasta área de terra firme e que, além de rico em seringueiras e castanheiras, possuía grandes campos naturais que possibilitavam o estabelecimento da pecuária. Um ramo de atividade econômica complementar à exportação da borracha que teve grande importância no vale do rio Acre, e que permanece praticamente ignorado por quantos escreveram as histórias mais antigas do Aquiry.
Isso se dava em razão de que, desde que foram implantados, os seringais acreanos sempre necessitaram de um abastecimento regular de carne fresca. A alimentação baseada somente em produtos enlatados que vinham da Europa industrial para alimentar as correntes de dependência econômica da borracha e as bocas de milhares de homens que viviam internados naquelas matas brutas, provocava a debilidade orgânica dos seringueiros e a consequente diminuição de sua produtividade. Por isso era necessário fornecer-lhes carne fresca, seja através da caça, seja através do gado de corte, que só podia ser obtido naquela época nos campos bolivianos. Já que caçar desviava a atividade dos seringueiros do corte da seringa foi articulada, desde as ultimas décadas do século passado, a importação de gado boliviano. Essa rede comercial conseguiu manter-se ativa até mesmo durante o período revolucionário que marcou a passagem do século e continuou em funcionamento pelas décadas subsequentes.
Porém, o estabelecimento do comercio de gado entre os criadores bolivianos e os seringalistas brasileiros criou necessidades específicas que precisavam ser atendidas. Depois da longa caminhada das manadas trazidas dos campos do Beni, ao norte da Bolívia, atravessando centenas de quilômetros de mata bruta - rasgada somente por estreitos varadouros entrecortados por inúmeros igarapés e rios - os bois que conseguiam suportar a longa travessia chegavam ao Acre magros e enfraquecidos, sendo necessário, portanto, engorda-los para o consumo. Era ai que entravam em ação os campos naturais do Gavião, da Cobra, os Campos do Capatará, os Campos Esperança, as Missões e os Campos do Palmares. Nestas áreas o gado magro ficava invernado para engordar o suficiente até seu abate e a subsequente realização dos lucros dos envolvidos nessa atividade.
Graças a isso o Palmares foi um seringal especial. Além de fornecer as tradicionais pelas de borracha e latas de castanha, produzia também, carne, leite, couro, queijo, e todos os produtos extraídos da atividade pecuária.
O velho Honório Alves construiu assim uma enorme fortuna que deixaria aos seus herdeiros, especialmente ao Dr. Carlos, que dela usufruiu ao longo de toda a vida, até morrer na mais absoluta miséria, ou, segundo nos disse um velho seringueiro nascido e criado nas terras do Palmares, “na pedra fria”.
Quanto à ALCOBRAS - aquelas enormes carcaças metálicas ainda visíveis por quantos percorrem a BR-317 no rumo de Xapuri e que um dia pretendeu produzir álcool, para na verdade somente produzir rombos nas contas bancárias e nos cofres públicos – seria, na verdade, assunto suficiente para outro artigo dessa coluna.
Basta-nos agora ver aquelas ruínas estranhas que reúnem em sua tristeza: casas da melhor madeira de lei - de uma floresta que testemunhou uma época de riqueza e conforto graças ao leite generoso de suas arvores - e prédios de alvenaria, ferro e amianto que não resistiram à realidade avassaladora da floresta e apodrecem com sua modernidade e tecnologia ao sabor das abundantes chuvas do inverno amazônico. Assim passamos a compreender que essa Amazônia maravilhosa não foi construída somente por sonhos românticos e felizes, mas em grande parte, por sonhos em ruínas.

* Artigo adaptado de texto publicado na revista Outras Palavras, Coluna Histórias das Margens, em setembro de 2000.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

de Bubuia*

(Mutações III)


Nesta época em que tudo se agita, devido à proximidade das eleições, é bom lembrar que nem sempre as coisas são tão simples quanto podem parecer à primeira vista. Assim, mais do que simplesmente identificar o criador da tradicional Balsa de Manacapuru, que serve de folclórico transporte para os que perdem as eleições no Acre, devemos buscar no vasto imaginário amazônico as insuspeitas raízes dessa original criação que ocupa todos os jornais acreanos no dia seguinte à apuração dos votos de cada eleição e anima as conversas e a generalizada gozação que toma conta de nossas ruas e esquinas.











Acho que não existe nada mais característico do pensamento acreano do que a história da Balsa. Ao pensar em tudo o que costuma acontecer nas eleições, é que consigo perceber como a Balsa pra Manacapuru é um santo remédio pra curar a ressaca dos derrotados e ao mesmo tempo controlar o entusiasmo dos vitoriosos.
Afinal de contas, a folclórica embarcação imaginária iguala a todos: desde os poderosos do momento, passando pelos iniciantes que fazem sua primeira viagem, até os eternos passageiros de todas as eleições. Mas o melhor de tudo é que a falada balsa leva para Manacapuru não só os políticos derrotados, mas também todos os seus eleitores. Por isso as conversas que tomam conta das ruas acreanas depois da eleição são muito estranhas para os visitantes que ainda não conhecem a fina ironia acreana:
- E aí, pegou alguma balsa nesta eleição?
- Eu não.
- Pois eu peguei balsa em três.
Assim, entre uma galhofa e outra, seguem os acreanos a rir da própria desgraça. Com isso a democrática balsa leva rio abaixo todos os males, rancores e desavenças da campanha. O que há que se reconhecer: é um jeito estranho, ou peculiar, de aceitar uma derrota. Mas é um jeito eficiente.
Olhando mais para atrás ainda, lembro que li num dos alfarrábios do Acre antigo a história da deposição de um dos tantos Prefeitos Departamentais que os acreanos tiveram que engolir depois que o governo brasileiro resolveu transformar isto aqui num território. Porém, o que realmente chamou minha atenção não foi a expulsão de mais um dos muitos ditadores, larápios ou escroques que foram nomeados para governar o Acre. Mas sim o fato de que ele foi expulso sem o direito, sequer, de esperar o próximo vapor, sendo logo embarcado em uma balsa pra pagar sua pena descendo o rio Acre. E lá se foi, sob os aplausos da população que assistia do barranco, o malfeitor exilado. Descendo lentamente de bubuia, curva após curva, pegando picada de pium, fugindo dos remansos e esperando receber uma ajuda que não viria, pois que era um passageiro da balsa, e nunca houve um que prestasse.
Por mais que eu tente não consigo me lembrar onde foi que li essa história e muito menos o nome dos envolvidos nela. Tá igual àquela outra história de uma família de hansenianos (como se dizia na época) que também descia o rio Acre de bubuia, parando só em lugares isolados para não sofrerem a hostilidade, filha da ignorância, dos que moravam nas margens. Tempos obscuros sobre os quais eu não lembro se li no livro “A Represa” de Océlio de Medeiros, ou no Certos Caminhos do Mundo de Abguar Bastos. Acho que estou ficando velho.
Em compensação, lembro perfeitamente de ter lido uma passagem do livro Na Planície Amazônica, de Raimundo Morais, que diz o seguinte: “Reconhecidamente daninho ao comércio comedido, o regatão paga alto imposto. Apanhado a negociar com a freguesia alheia e comprometida, os proprietários de seringais fraudados metem-no a ferros, surram-no e largam-no de bubuia.”
Como também lembro de um dos textos de Euclides da Cunha chamado “Judas Asvero” onde ele conta de um estranho costume que encontrou entre os seringais do Purus, no início do século XX.
Com sua prosa delirante e barroca, Euclides descreve passo a passo a atitude dos seringueiros que, em vez de simplesmente malharem o Judas no sábado de aleluia, como é comum em todo o mundo católico, fazem o boneco com muito capricho e depois embarcam-no numa tosca balsa que largam ao sabor da correnteza. Mas deixemos o próprio Euclides contar o que acontece a seguir: “E o Judas feito Asvero vai avançando... Então os vizinhos mais próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm... com repetidas descargas de rifle aquele bota-fora... E a figura desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca,... desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre,... à mercê das correntezas, ‘de bubuia’ sobre as grandes águas.”
Depois disso tudo, só posso chegar à conclusão de que se a balsa eleitoral é uma das mais importantes e populares instituições acreanas, então, descer o rio “de bubuia” é um santo e secular remédio amazônico para curar alguns dos males que afligem o povo sofrido dessas margens. É descendo o rio que se podem purgar as penas e cumprir os destinos perdidos, transmutando o que era ruim em algo bom.
E se é certo que foi o venerável mestre da Crônica da Cidade, Aloísio Maia, o responsável pela moderna versão mais light, na qual a balsa reserva aos seus passageiros apenas uma breve e bucólica estada em Manacapuru, ouvindo o melancólico choro dos surubins. Não podemos deixar de ver uma estreita conexão, quase arquetípica, entre a balsa eleitoral contemporânea e aquelas antigas que carregavam os malditos de todos os tipos, reais ou simbólicos, pra bem longe do Acre, bubuiando rio abaixo...

*Adaptado do texto publicado na revista “Outras Palavras”, coluna “Histórias das Margens”, em 2002.