domingo, 14 de novembro de 2010

Bolívia: A Balada de Bruno e Bernardino *

(2ª Parte)
Em 11 de setembro de 2008, um terrível massacre aconteceu na cidade de Porvenir. Curiosamente, esta história, aparentemente tão distante, tem muitos vínculos com a história do Acre, apesar de nosso tradicional desprezo em relação ao que acontece logo ali.



A propósito do massacre de Porvenir,
uma homenagem ao Povo Takana.
por Pablo Cingolani
Os Takana eram os senhores da selva. (...) Elcuai, o líder do povo, os guiava sempre em busca de Caquiawaca, a montanha encantada, a qual “Se vê, mas nunca se pode chegar”. (...)

Os Incas de Cuzco respeitaram a cultura dos Takana. Moradores da selva baixa que cobre os vales dos grandes rios que desembocam no maior de todos (o rio Beni) foram intermediários entre os recém chegados desde as terras altas e outras nações e povos das terras baixas. Os Takana viviam na porta de entrada de um grande Reino. Os Moxo eram um estado exemplar que se estendia pelas planícies de inundação. (...) uma relação bastante harmônica entre os povos das terras altas e seus pares das terras baixas. A palavra guerra recém apareceu nas crônicas quando quem as escreveu, chegou desde a outra margem do Oceano para invadir este lugar do mundo.
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Foi uma noite com fogo, com coca e bebida em Ixiamas. Noite negra na Amazônia, noite de fim do mundo, (...) Até que alguém empunhou (...) um violão, e começou a tocar e, sobretudo, a cantar. (...) Jamais havia escutado algo tão triste, porém, ao mesmo tempo, tão altivo, tão orgulhoso e tão sentido.
Quando encarei o homem para perguntar-lhe o que estava tocando, me respondeu: musica Takana. Quando quis averiguar seu nome, proclamou, como uma flecha cortando o vento da história e do esquecimento, que se chamava Racua e que um antepassado seu estava enterrado no cemitério do povoado.
* * *
Os espanhóis tiveram que enfrentar os Takana que estavam confederados para impedir que se apoderassem de seu território. (...) Vencidos pelas armas, mandaram os religiosos. (...) porém, sobretudo, morriam com as doenças que lhes inoculavam os estrangeiros.
Assim passaram anos, décadas, séculos, até que a selva mudou, dessa vez para sempre: (...) Como parte do devastador efeito do mercado mundial(...) a febre pela extração do caucho levou milhares de forasteiros para a floresta.
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“(...) Como a mão de obra era tão preciosa, se buscava prender aos trabalhadores através do sistema de dividas... As construíam de tal maneira que os índios sempre tinham grandes dívidas, de modo que na realidade eram escravos. Os trabalhadores se vendiam transferindo suas dividas para outras pessoas. Como sabiam que não podiam pagar as dividas por si mesmos, ao serem comprados recebiam alguma compensação. Tanto nas heranças, como nos caso de falência, os trabalhadores eram então contabilizados como bens.” Erland Nordenskiöld: Explorações e Aventuras na América do Sul. APCOB-Plural, La Paz, 2001, págs. APCOB-Plural, La Paz, 2001, pp 340-341 340-341.
“Se é uma triste verdade que os selvagens receberam muitas ofensas anteriores, até ver seus filhos arrebatados pelos cristãos, também é fato que este ultimo escândalo acontecerá com frequência (se refere a ataques de índios aos barracões de seringais) se não se pensar em corrigir a ferocidade dos selvagens (...) O selvagem é uma fera que quando está incomodada ataca sem limite. E uma fera tem que ser caçada...” Editorial de La Gaceta del Norte, 1889, n º 19. Tomado de Pilar Gamarra: Orígenes históricos de la goma elástica en Bolivia en Historia, N° La Paz, 1990, pág. Extraído de Pilar Gamarra: origens históricas da banda de borracha na Bolívia em História, n º La Paz, 1990, pg. 553.
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O caucho fez essa Bolívia nascida em 1825 recordar que seus territórios só terminavam no rio Purus. Bruno Racua, Takana de Ixiamas, como seu parente cantor que me levou a visitar-lhe no cemitério, foi um dos recrutados que foi levado a força para os seringais.. Alguns dizem que havia nascido em 1870 e que foi por sua própria vontade para a Guerra do Acre, a guerra que foi feita contra os brasileiros pelo território onde cresciam as arvores de caucho.
A história pessoal dos “invisíveis” sempre se perde nos meandros do passado. Se hoje recordamos de Bruno Racua é porque ele se transformou em herói nesta luta, apesar, inclusive, da maioria dos historiadores republicanos, que não citam seu nome. O filho de Nicolas Suarez – que os poderosos de ontem e de hoje chamam de “O Rei do Caucho” e promotor da “Civilização” e do “Progresso”, quando não foi mais do que um invasor dos territórios ancestrais dos povos indígenas, aos quais massacrou e explorou sem misericórdia – narrou assim ao desenlace do estratégico Combate do Bahia, em 11 de outubro de 1902: “Então se chamou a um índio ixiameño, cujo nome não me recordo, lhe entregamos um arco e uma flecha provida de uma mecha impregnada de querosene; e esta foi lançada sobre os tetos de folhas de palmeiras ressecadas pela ação do sol, dois minutos depois as chamas obrigavam a desalojar edifícios e trincheiras tomadas pelas chamas, obrigando à derrota aos apavorados que dias antes haviam ultrajado a soberania nacional...”. Filho de Nicolas Suarez: A Campanha do Acre, 1928. Tomado de Saavedra, Carlos P.: Pando, el último paraíso. Tirado de Saavedra, Carlos P., Pando, o último paraíso. Ed. Franz Tamayo, Cobija, 2001, pág. Ed Franz Tamayo, Cobija, 2001, pg.169 169.
Graças ao “índio cujo nome não recordo”, Nicolas Suarez pode conservar seus seringais e seguir explorando aos irmãos de Racua. Bolivia pode conservar algo mais importante: a soberania até o rio Acre, em cujas margens se acha hoje a cidade de Cobija (a antiga barraca chamada Bahia), capital do Departamento de Pando, desde onde partiram os assassinos que faz alguns dias assassinaram ao outro parente de Dom Bruno, o dirigente campesino Bernardino Racua.
Se a história foi suficientemente ingrata ao esquecer a Bruno Racua, um herói nacional indígena (agradeço o esclarecimento de Wilson García Mérida, em comunicação pessoal); hoje a história não só se repete como drama para os novos condenados da selva, mas se encena uma absurda prova de desprezo com o destino do assassinato de Bernardino Racua.
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“Mataram Bernardino Racua. Lembra dele? Estava no I Fórum Amazônico, era o bisneto de Bruno Racua. Me sinto impotente, triste e cheia de raiva” – uma companheira me escreveu e alertou angustiada – “Mataram os feridos no hospital e há mais feridos do outro lado do rio... foi um massacre.”Já começam a aparecer os testemunhos das execuções do que já é conhecido como o “Massacre de Porvenir” e que gente tão criminosa como os que empunharam as armas, porém utilizando teclados ou microfones, que pretendem encobrir o que aconteceu como se tivesse sido apenas um “enfrentamento”, as mesmas canalhadas que se utilizaram sob o império e o terror da Doutrina de Segurança Nacional. Pois, lhes dizemos: foi a continuidade do genocídio contra os povos indígenas e os camponeses amazônicos que começou no século XVI, chegou ao seu auge assassino nos anos do caucho e se perpetua até os dias de hoje.
Os executores das matanças mudam, porém os mortos seguem sendo os mesmos. Todos os que não perderam a sensibilidade frente aos dramas humanos, as atrocidades que tem que sofrer sempre os pobres e os humildes, devemos exigir que se esclareçam estes fatos e que os responsáveis materiais e intelectuais recebam julgamento e o castigo que são merecidos.
É muito duro escrever sobre isto, sobre uma nova dezena de mártires, que se somam a essa lista anônima e interminável das vitimas da opressão e da injustiça. Porém, nesta terrível hecatombe, porque talvez seja um símbolo, deveríamos recordar a Bernardino, o bisneto de Bruno, aquele que legou a todos os bolivianos este canto da pátria e, malditos paradoxos, aos assassinos de seu bisneto, aquilo que eles consideram sua fazenda e seu prestigioso poder. Deveríamos recordá-lo como o que foi, como o que eram também seus companheiros baleados: indígenas e camponeses amazônicos, trabalhadores de toda a vida, extrativistas que se internavam na floresta para colher castanha, amantes da floresta e seus protetores porque ela lhes deu, cada ano, o pão para seus filhos, gente humilde, gente boa, gente digna.


Se algo mudou na Bolívia nestes últimos anos é que a consciência social já não suporta estes atos violentos de absoluto desprezo pela vida dos mais desprotegidos e até mesmo à condição humana e que, por isso, não podem ficar impunes porque foi um genocídio, crime contra a humanidade, algo impossível de esquecer e de perdoar.
Entretanto, apesar do choro e da dor, oxalá a justiça encontre seu curso. Bernardino haverá de ter chegado junto a Bruno e, desde o cume do Caquiawaca, seguirão nos ensinando e amparando com sua memória.

* Publicado em 13 de setembro de 2008 em www.bolpres.com

domingo, 7 de novembro de 2010

Bolívia: A Balada de Bruno e Bernardino

(1ª Parte)*

Há algum tempo publiquei aqui nesta coluna uma das mais importantes passagens da história acreana. O Combate do Igarapé Bahia - vencido pelos bolivianos, teve como resultado a fixação da fronteira onde hoje estão Brasiléia e Cobija - cujo personagem central foi um índio Ixiameño chamado Bruno Racua, aquele mesmo da escultura em bronze que até hoje parece atirar flechas incendiárias sobre nós brasileiros.Entretanto, enquanto procurava imagens na internet para ilustrar o artigo, achei um texto que contava a história de um outro líder morto no massacre ocorrido em Porvenir, em 2008, entre os partidários de Evo Morales e o Governador de Pando Leopoldo Fernandez. A história de Bernardino Racua, bisneto de Bruno, tampouco deve ser ignorada ou esquecida, por isso peço licença ao seu autor para trazer este belo texto para cá, em livre tradução do espanhol.

A propósito do massacre de Porvenir,
uma homenagem ao Povo Takana.
por Pablo Cingolani

Os Takana eram os senhores da selva. Há muitos estudos etnohistóricos que provam sua gravitação e influencia. Elcuai, o líder do povo, os guiava sempre em busca de Caquiawaca, a montanha encantada, a qual “Se vê, mas nunca se pode chegar”. Jawaway é o dono dos animais, especialmente dos que andam em bando e servem como alimento: é necessário sempre pedir sua permissão e honrá-lo, já que, de outra maneira, as cutias e os porcos desapareceriam e se poderia passar fome.


Os Incas de Cuzco respeitaram a cultura dos Takana. Moradores da selva baixa que cobre os vales dos grandes rios que desembocam no maior de todos (o rio Béni) foram intermediários entre os recém chegados desde as terras altas e outras nações e povos das terras baixas. Os Takana viviam na porta de entrada de um grande Reino. Os Moxo eram um estado exemplar que se estendia pelas planícies de inundação. Viviam ali centenas de milhares de pessoas que haviam desenvolvido um singular complexo de manejo das águas, que permitiu o surgimento de uma potente economia agrícola, que se traduziu em prosperidade para toda a gente. E uma fama que se estendeu, para além dos pântanos e das montanhas.
Guamán Poma, conta como o Inca Uturunco - o Rei Jaguar – não só trouxe a folha de coca das selvas para disponibilizá-la nos Andes, mas também que se casou com uma princesa Takana, ou Moxeña, quem sabe. O certo é que, nesses tempos, havia algo que agora não há, ou se esqueceu ou se perdeu entra a confusão e o horror que chegavam: uma relação bastante harmônica, uma comunidade respeitável, entre os povos das terras altas e seus pares das terras baixas. A palavra guerra recém apareceu nas crônicas quando quem as escreveu, chegaram desde a outra margem do Oceano para invadir este lugar do mundo.

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Foi uma noite com fogo, com coca e bebida em Ixiamas. Noite negra na Amazônia, noite de fim do mundo, faz anos, quando se chegar a Ixiamas se fazia distante, difícil. A conversa fluía, o companheirismo também, no compasso dos grilos e das rãs. Até que alguém empunhou um violino, ou um violão, e começou a tocar e, sobretudo, a cantar. Conhecia os “buris” de Apolo, de santa Cruz do Vale Ameno, desses lados do Machariapu e do Tuichi. Porem estes cantos, ou essa musica, o metal da voz, seu tom, eram outra coisa, de outra dimensão, outra profundidade. Jamais havia escutado algo tão triste, porém, ao mesmo tempo, tão altivo, tão orgulhoso e tão sentido.
Quando encarei o homem para perguntar-lhe o que estava tocando, me respondeu: musica Takana. Quando quis averiguar seu nome, proclamou, como uma flecha cortando o vento da história e do esquecimento, que se chamava Racua e que um antepassado seu estava enterrado no cemitério do povoado.

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Os espanhóis tiveram que enfrentar os Takana que estavam confederados para impedir que se apoderassem de seu território. A guerra cruel, como a chamou o próprio Adelantado Alvarez de Maldonado, que fizeram os nativos aos usurpadores durante a segunda metade do século XVI, foi um brilhante exemplo de resistência anti-colonial bem sucedida. Ali surgiram os primeiros nomes dos heróis que a história oficial sempre negou: Tarano, o Cacique dos Toromonas; Arapo, o Cacique dos Uchupiamonas. Todos eram Takana e tão valentes e ardorosos no combate que impediram que os invasores se assentassem no sul da Amazônia por muito tempo. Na realidade, nunca conseguiram.
Vencidos pelas armas, mandaram os religiosos. Os frades exploraram o lado sensível e bondoso dos habitantes da selva e os seduziram, começando um trabalho de “zapa”, que persiste até hoje, para abolir sua cultura, para que esqueçam sua Caquiawaca e seu Jawaway, para que deixem de ser eles mesmos. Fundaram missões – em 1721, a de Ixiamas – para reduzir-los, civilizar-los e controlar-los. Os Takana não foram dóceis como pretendiam os missionários e se refugiavam nos montes, porém, sobretudo, morriam com as doenças que lhes inoculavam os estrangeiros.



Assim passaram anos, décadas, séculos, até que a selva mudou, dessa vez de verdade e para sempre: ao norte do mundo, uma árvore da Amazônia havia adquirido um valor inusitado para seu uso e para fabricar diversas coisas para os povoadores desses países que se situavam a milhares de quilômetros da selva. Como parte do devastador efeito do mercado mundial, que sempre esteve de uma ou outra maneira globalizado pelos impérios da vez, a febre pela extração do caucho conduziu milhares de forasteiros para a floresta. Esta ação se traduziu em pesadelo que até hoje segue ocultado e silenciado e pior, persiste, como demonstram os fatos vividos em Porvenir faz alguns dias: o primeiro grande momento de genocídio dos povos indígenas amazônicos. Os Takana não escaparam a essa fúria e ambição capitalista que “resultou em perseguição (correrias) aos indígenas, que praticamente foram exterminados por matanças, trabalho escravo e mudança de famílias inteiras aos seringais do norte” (Díez Astete, Álvaro e Murillo, David: Pueblos indígenas de Tierras Bajas. Caracteristicas principales. MDSP-VAIPO-PNUD, La Paz, 1998, pág.201).
(Continua...)





* Publicado em 13 de setembro de 2008 em www.bolpres.com

“Chove lá fora e aqui...”

Tem dias em que nossa alma está tal qual o mundo lá fora. O Toinho Alves tem razão quando diz que os dias e noites de junho-julho são os mais belos do ano. Mas tenho que confessar: amo esses dias de início do inverno. Quando a chuva volta a encharcar a terra sedenta e ressecada. Nesses dias a melancolia do céu reflete, à perfeição, a melancolia que sempre morou em meu coração e, aqui e acolá, volta a transbordar.Em dias assim, só os amigos podem nos salvar. Por isso, hoje, pedi socorro à Galeano, intérprete de tantas vozes silenciosas em nossas veias abertas...

Mundo
Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas.
- O Mundo é isso – revelou. – Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.


Celebração da voz humana/1
Os índios Shuar, chamados de Jíbaros, cortam a cabeça do vencido. Cortam e reduzem, até que caiba, encolhida, na mão do vencedor, para que o vencido não ressuscite. Mas o vencido não está totalmente vencido até que fechem sua boca. Por isso os índios costuram seus lábios com uma fibra que não apodrece jamais.

Crônica da cidade do Rio de Janeiro.
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor estende os braços. Debaixo desses braços os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalça olha o Cristo, lá de baixo, e apontando seu fulgor, diz, muito tristemente.
- Daqui a pouco, já não estará mais aí. Ouvi dizer que vão tirar Ele daí.
- Não se preocupe – tranqüiliza uma vizinha. – Não se preocupe: ele volta.
A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta soam tiros e também tambores: os atabaques, ansiosos de consolo e de vingança, chamam os deuses africanos. Cristo sozinho não basta.
Dizem as paredes/2
Em Buenos Aires, na ponte da Boca:
Todos prometem e ninguém cumpre. Vote em ninguém.
Em Caracas, em tempos de crise, na entrada de um dos bairros mais pobres:
Bem vinda, classe média.
Em Bogotá, pertinho da Universidade nacional:
Deus vive.
Embaixo, com outra letra:
Só por milagre.
E também em Bogotá:
Proletários de todos os países, uni-vos!
Embaixo, com outra letra:
(Último aviso)
A noite/3
Eu adormeço às margens e uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.



Celebração das contradições/2
Desamarrar as vozes, dessonhar os sonhos: escrevo querendo revelar o real maravilhoso, e descubro o real maravilhoso no exato centro do real horroroso da América.
Nestas terras, a cabeça do Deus Elegguá leva a morte na nuca e a vida na cara. Cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível, e os delírios, outra razão.
Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia.
Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louco aventura de viver no mundo.

A paixão de dizer/2
Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas.

A uva e o vinho
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.
Trechos de “O livro dos abraços”, Eduardo Galeano, 2005. Ilustrações de Danilo de S´Acre.